quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O verdadeiro espírito belga – 1

Durante o Verão, Bruxelas tem o belíssimo hábito de organizar festarolas de fim de tarde em locais altamente improváveis. Tanto pode ser no centro da cidade, como num bairro residencial com uma praça convidativa. Ou mesmo na praia artificial, que este ano foi montada novamente. O trânsito é fechado. Há comes e bebes (mais bebes do que comes), música até ser noite e muita gente com boa pinta. E, como em qualquer ajuntamento, às vezes há confusão…
Estava eu numa destas festas, em amena cavaqueira com um grupo que tinha acabado de conhecer, quando uma cena de faca na liga desponta mesmo nas minhas costas. Um rapaz decididamente embriagado, algures no final da adolescência, começa a discutir com uma rapariga, sensivelmente da mesma idade. Os olhares dos que estavam à volta – geralmente ainda sóbrios, mais coisa menos coisa – voltam-se para o casal em disputa. Grita daqui, berra dali, a conversa vai subindo de tom. É ele quem faz as vezes de donzela ofendida que quer lavar a roupa suja na praça pública. Ela nem pia. De repente, quando já todos estávamos de sabão Clarim na mão para pôr ordem em tanta roupa suja, toma lá um tabefe. Ela tomba. Ele ajoelha-se e quer assestar-lhe outro. Uma série de rapazes acorre a separar as partes desavindas. Levam o rapaz para fora do recinto e a rapariga volta para o junto do seu grupo de amigos. A paz volta a reinar.
Mas a minha colega, italiana a 100%, está corada que nem um tomate. Já não pode em si de fúria:
- Ele estava a bater na rapariga! Isto não se pode admitir! Bater numa mulher… que pouca vergonha!! É preciso fazer qualquer coisa!
O namorado dela, que é belga a 200%, responde sem alvoroços:
- Já está tudo resolvido. Já os separámos e acabou a cena. Está tudo bem…
Mas a italiana não desarma. Está possessa. Está fora de si e clama por justiça. De preferência, logo ali.
- Mas isto não pode ser! Ele bateu-lhe. É preciso fazer alguma coisa. Aquele grande malandro…
O belga continua na dele. Como se não fosse nada com ele:
- Mas a gente está-se nas tintas. “On s’en fou”. É uma briga de namorados. Amanhã logo se entendem.
Agora ela já não se aguenta. Quer a cabeça do rapaz:
- E ele agora vai-se embora na boa? Não pode ser! Ele tem de ser castigado! Tem de apanhar!
Eis senão quando o belga responde como só eles sabem:
- “Chou chou”, o que é que queres fazer? Não lhe vamos à cara, pois não? Já os separámos, já está tudo bem. Não stresses…
Cá está a maneira belga de agir: não remoer os assuntos. “Laisse tomber” - deixa lá. É a expressão idiomática mais utilizada neste país. Aprende-se nos primeiros meses de vida aqui mas só se compreende muito depois. O belga viu - e bem - que mais violência não levaria a qualquer lado. Para quê preocuparmo-nos com um conflito ao qual se pôs fim? Para quê ruminar num assunto que já é do passado? Sobretudo se não é da nossa conta (e até já fizemos o possível para resolver)? Este é o verdadeiro espírito belga. Gosto. Não gostava, mas aprendi a gostar.
Boa semana e, se algum problema se insinuar no vosso caminho, já sabem como lhe responder... “laisse tomber”, pois claro!

3 comentários:

Anónimo disse...

O belga tinha razão, aquele assunto estava resolvido, mexer mais podia a levar a mais problemas.
Em julho na minha zona um homem que tinha 2 mulheres, bateu numa e a outra chamou a policia. Ele quando viu a policia matou aquela a quem tinha batido, que era a que estava em casa com ele. Depois veio a policia especial e matou a ele, mas quando a casa já estava a arder.
Se ele não visse a policia provávelmente poupava-se uma vida, porque a dele foi bem acabarem com ela.

Margarida disse...

Bem, eu sou 100% portuguesa mas tb tinha ficado no mesmo estado de fúria... Essa conversa de "entre marido e mulher ninguém mete a colher" nunca me satisfez!
E, neste momento, pelo menos em Pt a violência doméstica já é crime público e qualquer um pode intervir ou chamar a polícia.
Conclusão: Não sou italiana mas podia ser!!! :
Finalmente, queria só dizer q quando me tentaram assaltar no Metro de Praga, na mesma carruagem seguia um grupo de italianos que foram os únicos q se manifestaram e se eu não os tivesse acalmado tinham partido as trombas do assaltante! Não é q ele não merecesse mas era domingo de Páscoa e preferi seguir em paz! Conto este pequeno episódio apenas para demonstrar q os italianos "não se ficam" e desde q meta zaragata estão sempre prontos a ajudar nem q seja um desconhecido!

M disse...

Boa política a dos belgas. Como boa portuguesa e como odeio homens que batem nas mulheres acho que me dava uma fona com o rapazito, mas acho a forma de reagir dos belgas (se é sempre assim) uma maravilha. Quem dera ser assim! Para quê stressar com assuntos que ou estão já resolvidos ou se vão resolver com o tempo? Claro que levado ao exagero pode-se ver matar alguém e não fazer nada mas que é uma boa filosofia de vida, lá isso é. Espero que sim, que a adoptes e deixes de te stressar.Bjs M