segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Há dias assim - 3

Hora de almoço. Salteado de marisco. Está óptimo, um dia destes ensino a fazer.




Apetece-me uma batatinha frita. Só uma não vai estragar a dieta. Bom, duas ou três também não... Deito as batatas fritas no prato e levo para a varanda. Mas sou interrompido pelo telemóvel. Entretanto, ouço qualquer coisa a voar. São as batatas, que já estão espalhadas pelo chão da varanda. Desligo. Apanho as batatas. Recomeço a refeição. Ainda não acabei, mas estava-me mesmo a apetecer uma empada. E até calha bem que tenho ali umas congeladas. Porreiro. Vou buscar a empada. Descubro que a arca tem meio metro de gelo na primeira prateleira. Agarro numa espátula – de entre as coisas que me ocorreram para tirar o gelo, foi a que estava mais à mão. Não, não procurei muito, escusam de perguntar. Começo a bater no gelo. Que começa a cair. Para dentro da gaveta. Tiro a gaveta. Ponho um prato de sopa para apanhar o gelo – não, também não tinha mais nada à mão e se tinha não procurei. Despejo o gelo, volto a colocar a gaveta, fecho a arca. Retomo a minha refeição e pelo caminho esqueci-me de que me apetecia a empada que está na origem desta cena. Levo de novo o tabuleiro para a varanda. A faca cheia de molho ganha vida e salta para o chão. Mas eu mantenho a calma, nada de irritações, “laisse tomber”. Termino a refeição e vou pegar no jornal que ficou na varanda. Então é que estão os horários dos cinemas? Página 32? Mas não há cá nenhuma página 32. O caderno principal só tem quatro páginas! Não pode ser, eu comecei a lê-lo no ginásio e tinha muitas páginas. Então a reportagem sobre a América dos confins na página 16? Não está cá. Faltam-me dois terços do jornal. Ora esperem lá… Eu comprei um jornal inteiro, cheguei a casa com um jornal inteiro e agora tenho um terço do jornal. Não estou maluco – acho eu… E não bebi nada, ok? Querem lá ver que o barulho de coisas a voar era o jornal? Inspecciono as varandas alheias em busca das secções perdidas. Nem rasto. Acreditam que perdi um jornal dentro da minha própria casa?

sábado, 14 de agosto de 2010

Olha que coisa mais linda...

A Grand Place de Bruxelas vestiu-se de flores. As begónias - são só begónias - são colocadas de dois em dois anos, com um tema diferente. Este ano foi a presidência belga da União Europeia. Subi à varanda da Câmara Municipal e fiquei sem palavras. Oram vejam:









quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Há dias assim - 2

Eu julgava que já me tinha acontecido tudo o que tinha a acontecer na tarde de ontem. Mas enganei-me. De onde veio tanto disparate havia mais.
Venho para casa, banho, mais Bon Jovi – alto e bom som - e jantar. (Ainda o assado, que entretanto foi hibernar para o congelador). Eis senão quando a minha tia me diz que ninguém atende do meu telemóvel. Não? Pois como é que hei-de atender se não toca? A propósito, que é feito dele? Vou ligar para mim. Ah, não o ouço. Não o tenho. Perdi-o. A histeria instala-se. Procuro, não acho. Desespero. Calma, deve ter ficado no ginásio. Que se torna no primeiro ponto de passagem do dia seguinte. Mas não está lá. Ligo a meio do dia, porque me lembrei de que ficou lá. Mas não está. Histeria absoluta, vontade de bater nalguém, tentativa falhada de destruir uma parede. Telemóvel novo não estava nas minhas contas. Além de que contém todos os meus contactos de Bruxelas. Procuro um novo telemóvel, cancelo o velho. Interrompo a histeria para ir regar as plantas da Vanessa. Mais uma chamada para o ginásio. Nada feito. Estou à beira de enviar uma mensagem aos amigos para que me enviem os seus contactos – já mesmo a carregar no botão “Enviar” - quando me ligam do ginásio com música para os meus ouvidos. Uma alma caridosa guardou-o no seu cacifo para não ser roubado. Há gente boa neste mundo. Nossa Senhora de Antuérpia ouviu as minhas preces. Amo esta desconhecida que me guardou tão valiosa maquineta. Não sei quem é mas amo-a assim mesmo.
Claro que no caminho para recuperar o bicho, entro numa camioneta suburbana, que já apanhei duzentas e vinte vezes, e o motorista decide que o meu passe não serve. Serve há pelo menos meio ano. Mas não hoje. Hoje tenho de pagar bilhete. Dois euros. Paga e cala, se não vai a pé. “Laisse tomber”, o telemóvel está a salvo…

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Há dias assim

Veio-me hoje à memória a canção que Portugal levou à Eurovisão este ano. Tinha por título «Há Dias Assim», que me parece uma forma muito apropriada de descrever o meu fim de tarde.
Desde que voltei de férias corro 25 minutos por dia no ginásio quatro vezes por semana. Dez deles na velocidade 8.2 e os restantes cinco na 8.5. Gasto pelo menos 220 calorias. Que, parecendo que não, são dois iogurtes de pedaços.
Imbuído deste espírito, subi para a passadeira. Mas não havia maneira de encontrar a música que queria no leitor de MP3. Passa um minuto, passam dois, e não saio da velocidade 5.2. Só mais um bocadinho… aos três minutos e meio, lá consegui encontrar os Bom Jovi. Ok, vamos lá passar para os 8.2. Dois minutos depois, algo toca perto de mim. Esta canção tem um telemóvel a tocar no meio. Que coisa mais parva. Mudo a canção. Esquisito, o telemóvel continua a tocar. E é o mesmo toque. Querem lá ver que é o meu? E era. Estava a tocar porque a minha Mãe me tinha deixado uma mensagem e, quando assim, é, o bicho toca sem descanso até que liguemos o número das mensagens e as ouçamos. Mais devagar outra vez, ó senhora dona passadeira. Agora voltemos ao normal. Aos oito minutos, quando pensava que era desta que ia manter a velocidade, vejo um atacador a desapertar-se. Mais um bocadinho e já te aperto. Mas entretanto já estão os dois desapertados. Carrego no botão. Pára tudo. Aperto os atacadores. Volto a ligar. Volto a correr. Quando finalmente abandonei a passadeira e me encaminhei para o balneário, pensando que já teria tido a minha quota mais a do vizinho, vejo uma quantidade de senhores à entrada dos duches como quem está na paragem de autocarro. «É a fila!», diz-me o último. Pronto, desisto, não faço mais ginástica, não tomo mais banho, não quero saber. Deixem-me ir para casa sossegado, sim? Não. Estava a vestir as calças quando um empregado decide começar a reparar os mosaicos quase debaixo dos meus pés. Então não haveria melhor altura para este serviço? Há dias assim…

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Para vos fazer inveja...

Eis o meu jantar de ontem (e hoje, e amanhã...) confeccionado por... mim!





Assado de atum com camarão. Só para vos fazer inveja e abrir o apetite - quer o leiam agora, que já é hora da ceia, ou amanhã quando estiverem esgalgados pelo pequeno almoço.
Fiquei muito satisfeito comigo mesmo, pois não só o assado saiu quase igual ao do livro de receitas mas, pela primeira vez, consegui fazer essa coisa tão extraordinária e complexa que é molho branco. Pode ser muito simples para muito boa gente, mas para mim que sou leigo é uma tarefa hercúlea. Tanto assim que eu tenho sempre à mão um pacote daquelas bases para molhos, que é a única forma de eu conseguir dar com o dito feito sem percalços irritantes, tais como a farinha não dissolver, ficar tudo agarrado ao fundo, queimar o tacho, inundar o fogão de leite ou entornar farinha pela bancada, chão e demais partes da cozinha que possam estar ao meu alcance. Tenho a informar com orgulho que nada disso aconteceu - e o assado ficou delicioso!
Quarta é o meu primeiro dia de rega às plantas da Vanessa. Não, não têm hora marcada, mas têm dia marcado - e a Vanessa telefona à noite a perguntar como correu a lida... depois conto-vos!
Boa semana!

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Mudança de turno

A minha saga da rega está prestes a começar. Amanhã vou-me encontrar com a funcionária de turno para recolher o acesso às instalações. Ou seja, vou-me encontrar com a amiga da Vanessa que tem executado tão complexa tarefa na última semana. Pois é, não pensem que a Vanessa deixou o seu rico jardim totalmente a meu cargo. Pelo contrário. Elaborou todo um plano de manutenção, segundo o qual dois aprendizes de jardineiros – a amiga e eu – partilharão a tarefa consoante as suas disponibilidades. Assim sendo, coube à amiga proceder à rega duas vezes e a mim três. Como a tal amiga ainda lá vai amanhã de manhã, eu só começarei a faina na próxima Terça. Votos de um dia viçoso!

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O queixume

Ultimamente não tenho grande paciência para certas pessoas. Que são umas queridas e eu adoro do fundo do coração, mas francamente anda-me a faltar a pachorra. Se calhar sou eu, mas não ficam um bocadinho fartos de ouvir bocejar e suspirar em modo permanente? Eu fico. E não ficam um bocadinho sem paciência ao ver caras de enjoo, estilo toda a gente lhes deve e ninguém lhes paga? E não vos dá cabo da cabeça quando queixas com elas se tornam no prato do dia? Mesmo com razões para isso, muitas e várias. Que eu não só compreendo, como partilho. Mas não é lá por isso que me dá vontade de ouvir lamúrias o tempo todo… falta aqui um bocadinho de espírito belga, falta…

O verdadeiro espírito belga - 2

Na mensagem que aqui deixei, procurava ilustrar o espírito belga. O exemplo da violência entre casais – a violência de sexo, como dizem na televisão espanhola – não é propriamente o melhor exemplo, mas dá para ver como reagem os belgas. Como vocês sabem, sou pacifista e acho a violência inadmissível, seja de que tipo for. Violência nem sequer verbal – mais palavrão, menos palavrão, claro. E claro que essa história de “entre homem e mulher ninguém meta a colher”, como dizem nos vossos comentários é tanga…
Mas o espírito belga não é tanga nenhuma. Minutos depois da cena do casal desavindo, vou despedir-me de uma amiga que, imbuída de espírito feminino, me pede para a acompanhar ao carro. Confesso que não acho particularmente excitante quando uma mulher me pede para a acompanhar ao carro. Nem ao metro. Ainda se fosse a casa dela… Prefiro quando me respondem “Não é preciso, eu posso ir perfeitamente” – gosto de mulheres independentes, como já sabem. Chegados ao carro, a pequena avista um McDonald’s e tem uma ideia luminosa:
- E se fôssemos comer qualquer coisa?
- A esta hora? É meia-noite.
Já não é a primeira vez que ela faz destas.
- E então? Está-me a apetecer. Vamos lá, “on se fait plaisir”!
Ok, então vamos lá…
Diante da empregada, o verdadeiro espírito belga emerge em todo o seu esplendor:
- É um menu de peixe, por favor.
Eu só lhe estava a fazer companhia, não tinha nem fome nem vontade de comer. Além de que devia estar em dieta.
- Não comes nada?
- Não.
- Que jeito! Come lá qualquer coisa para eu não me sentir mal.
Se insistes tanto…
- Bem só se fosse um gelado. Mas eu até estou de dieta…
- Ora, também eu, mas estou-me a borrifar. “On s’en fou”. Vais comer só o gelado?
- Já agora, podia comer um panado de frango. Mas depois engordo.
- Que se lixe! Só se vive uma vez.
Face a isto, não me restou alternativa. A gula ficou satisfeita. “On s’est fait plaisir” dizemos os dois. Cá está o verdadeiro espírito belga.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O verdadeiro espírito belga – 1

Durante o Verão, Bruxelas tem o belíssimo hábito de organizar festarolas de fim de tarde em locais altamente improváveis. Tanto pode ser no centro da cidade, como num bairro residencial com uma praça convidativa. Ou mesmo na praia artificial, que este ano foi montada novamente. O trânsito é fechado. Há comes e bebes (mais bebes do que comes), música até ser noite e muita gente com boa pinta. E, como em qualquer ajuntamento, às vezes há confusão…
Estava eu numa destas festas, em amena cavaqueira com um grupo que tinha acabado de conhecer, quando uma cena de faca na liga desponta mesmo nas minhas costas. Um rapaz decididamente embriagado, algures no final da adolescência, começa a discutir com uma rapariga, sensivelmente da mesma idade. Os olhares dos que estavam à volta – geralmente ainda sóbrios, mais coisa menos coisa – voltam-se para o casal em disputa. Grita daqui, berra dali, a conversa vai subindo de tom. É ele quem faz as vezes de donzela ofendida que quer lavar a roupa suja na praça pública. Ela nem pia. De repente, quando já todos estávamos de sabão Clarim na mão para pôr ordem em tanta roupa suja, toma lá um tabefe. Ela tomba. Ele ajoelha-se e quer assestar-lhe outro. Uma série de rapazes acorre a separar as partes desavindas. Levam o rapaz para fora do recinto e a rapariga volta para o junto do seu grupo de amigos. A paz volta a reinar.
Mas a minha colega, italiana a 100%, está corada que nem um tomate. Já não pode em si de fúria:
- Ele estava a bater na rapariga! Isto não se pode admitir! Bater numa mulher… que pouca vergonha!! É preciso fazer qualquer coisa!
O namorado dela, que é belga a 200%, responde sem alvoroços:
- Já está tudo resolvido. Já os separámos e acabou a cena. Está tudo bem…
Mas a italiana não desarma. Está possessa. Está fora de si e clama por justiça. De preferência, logo ali.
- Mas isto não pode ser! Ele bateu-lhe. É preciso fazer alguma coisa. Aquele grande malandro…
O belga continua na dele. Como se não fosse nada com ele:
- Mas a gente está-se nas tintas. “On s’en fou”. É uma briga de namorados. Amanhã logo se entendem.
Agora ela já não se aguenta. Quer a cabeça do rapaz:
- E ele agora vai-se embora na boa? Não pode ser! Ele tem de ser castigado! Tem de apanhar!
Eis senão quando o belga responde como só eles sabem:
- “Chou chou”, o que é que queres fazer? Não lhe vamos à cara, pois não? Já os separámos, já está tudo bem. Não stresses…
Cá está a maneira belga de agir: não remoer os assuntos. “Laisse tomber” - deixa lá. É a expressão idiomática mais utilizada neste país. Aprende-se nos primeiros meses de vida aqui mas só se compreende muito depois. O belga viu - e bem - que mais violência não levaria a qualquer lado. Para quê preocuparmo-nos com um conflito ao qual se pôs fim? Para quê ruminar num assunto que já é do passado? Sobretudo se não é da nossa conta (e até já fizemos o possível para resolver)? Este é o verdadeiro espírito belga. Gosto. Não gostava, mas aprendi a gostar.
Boa semana e, se algum problema se insinuar no vosso caminho, já sabem como lhe responder... “laisse tomber”, pois claro!